ENRIQUECIMENTO AMBIENTAL PARA FELINOS DOMÉSTICOS
Deve-se distinguir a simples intervenção ambiental, que consiste em mudanças no ambiente, neutras ou negativas do ponto de vista do bem-estar animal, do enriquecimento ambiental, em que existem evidências empíricas que sugerem uma melhora na qualidade de vida do animal.
O aumento do número de gatos como animais de companhia é um fenômeno mundial. A população felina excede a canina em alguns países da Europa e nos Estados Unidos. Ainda, o número de gatos mantidos como animais de estimação têm superado o de cães, passando dos 200 milhões nos Estados Unidos, Reino Unido e China (OLIVEIRA, 2012).
A domesticação do gato está relacionada à idolatria pelos egípcios, bem como à sua aproximação dos vilarejos, na Idade Média, em virtude da ocorrência elevada densidade de roedores. Durante sua evolução, não houve seleção para melhoras características comportamentais específicas, mantendo-se vários comportamentos naturais (GENARO, 2005). A compreensão da persistência dessas características é necessária a partir do momento em que se desejam melhor convívio e bem-estar dos gatos que mantemos confinados.
Um animal em perfeito bem-estar deve estar livre de fome e sede, livre de desconforto, livre de dor, injúrias e doenças, ter liberdade para expressar seus comportamentos naturais e estar livre de medo e estresse (WPA, 2013). O Enriquecimento Ambiental (EA) relaciona-se diretamente com as duas últimas liberdades, fornecendo substrato para o desenvolvimento de um corpo e mente saudáveis e permitindo que o animal manifeste comportamentos semelhantes àqueles encontrados em ambientes selvagens. Consiste na adição de um ou mais elementos a um ambiente relativamente pobre, de forma a melhorar o bem-estar físico e psicológico dos animais que ali habitam (ELLIS, 2009). Gatos são responsivos a condições pobres de bem-estar, com a inibição de comportamentos normais, como alimentar-se e defecar, apresentando modificações em parâmetros morfológicos, moleculares e fisiológicos do cérebro, prejudicando seu desenvolvimento e causando alterações comportamentais e doenças (FUKUSHIMA; MALM, 2012).
Deve-se distinguir a simples intervenção ambiental, que consiste em mudanças no ambiente, neutras ou negativas do ponto de vista do bem-estar animal, do EA, em que existem evidências empíricas que sugerem uma melhora na qualidade de vida do animal. O uso de parâmetros comportamentais sabidamente conhecidos, por estarem ligados ao bem-estar animal, facilita a identificação das intervenções que podem ser consideradas enriquecedoras (ELLIS, 2009).
Os principais objetivos do enriquecimento ambiental são:
• Aumentar a diversidade de comportamentos que um animal pode expressar;
• Reduzir a frequência de comportamentos anormais;
• Aumentar de forma positiva as diversas interações com o ambiente;
• Aumentar a habilidade de lidar de forma positiva e mais natural possível com as adversidades;
• Desviar, para locais ou situações aceitáveis, comportamentos naturais do animal que são indesejáveis para o seu responsável.
ESTRATÉGICAS ANIMADAS
As estratégicas animadas compreendem as interações sociais que podem ser realizadas com indivíduos da mesma espécie (intraespecíficas), de espécies diferentes (interespecíficas) ou ambas. Estas ainda podem ser temporárias ou permanentes (ELLIS, 2009). Esse tipo de enriquecimento social pode trazer melhorias na qualidade do tempo gasto em confinamento, mas os gatos variam bastante em seu grau de sociabilidade. O convívio benéfico intra ou interespecífico envolve fatores individuais, bem como a adequada socialização quando jovens, além da ausência da necessidade de competir por comida, água, áreas de descanso e convívio (FUKUSHIMA; MALM, 2012).
Os gatos de vida livre apresentam uma organização social em grupos e compartilham comportamentos afiliados, como dormir juntos, fazer toalete mútua (grooming), esfregar-se uns contra os outros, partilhando marcas olfatórias, ronronar, brincar e partilhar a comida (GEBRAEL, 2000). Esses comportamentos são observados apenas entre certos indivíduos do grupo, sugerindo a existência de preferências nessas associações. Não está claro se há uma diferença significativa no grau das interações positivas com relação ao gênero e ao grau de parentesco entre os animais (ELLIS, 2009).
Quando confinados, os gatos são forçados, muitas vezes, a conviver com outros indivíduos escolhidos pelo seu responsável. Nessas situações, alguns animais permanecem solitários, enquanto outros estabelecem laços sociais que proporcionam melhor qualidade de vida, uma vez que incrementam a variabilidade e complexidade de interações sociais desses indivíduos (ELLIS, 2009).
Cada animal, dentro de seu grupo, possui um território próprio, que consiste em uma área ocupada, defendida e de uso exclusivo, e uma área por onde se move durante suas atividades diárias, denominada home range. Ainda, dentro desses grupos, são observados os rituais de dominância, agressão e submissão denominados comportamentos agonísticos (BEAVER, 1980). Portanto, é importante que dentro de um ambiente fechado, onde convivem vários animais, sejam distribuídos em diversos locais potes de água e comida, caixas de areia e substratos de descanso para evitar estresse e agressões relacionados à disputa por território, comida e hierarquia. Prover espaço suficiente que permita uma distância mínima de um a três metros entre um gato e outro, tanto horizontal quanto verticalmente, pode evitar competição pelo território (GENARO, 2005).
Já a interação social interespecífica compreende a interação do gato com humanos, podendo ocorrer também com outros animais. Novamente, a forma como se desenvolve o período de socialização interfere significativamente nesses relacionamentos. Alguns gatos apreciam o contato físico com seu responsável, demonstrando prazer ao ser acariciados e escovados. De forma geral, os gatos não toleram carícias prolongadas e em regiões sensíveis, como o abdômen, e não apreciam algumas manifestações, como beijar e abraçar. Outros preferem a interação por meio de brincadeiras, principalmente as do tipo predatório (o responsável fazendo o papel da presa) (FUKUSHIMA; MALM, 2012).
ESTRATÉGIAS INANIMADAS
As estratégias inanimadas consistem na inclusão de fatores não vivos no ambiente do animal, como a adição de estruturas físicas, o uso de brinquedos, mudanças no método de alimentação e estimulação sensorial, aumentando, assim, a complexidade do ambiente (ELLIS, 2009).
ESTRATÉGICAS FÍSICAS
O ambiente físico é um fator crítico para o bem-estar animal, porém a qualidade do espaço se faz tão importante quanto seu tamanho, pois fatores inapropriados podem prejudicar o estado fisiológico do animal, sendo importante delinear métodos de enriquecimento que vão ao encontro de suas necessidades (OLSSON et al., 2003).
Na natureza, os gatos têm a oportunidade de escalar, pular, procurar conforto em locais elevados e seguros. Em ambientes fechados e restritos, uma opção de oferecer-lhes situações semelhantes às citadas é se aproveitar do espaço vertical, por meio da implantação de prateleiras, de preferência em locais silenciosos e de pouca luminosidade. Além de encorajar exercícios físicos, esse tipo de enriquecimento proporciona aos felinos uma excelente oportunidade de descanso, recuo e observação com segurança. Ao fazer essa adaptação, o responsável deve se certificar de que o gato consiga subir e descer dos locais com segurança, sendo descer mais difícil do que subir. A utilização de caixas (por exemplo, de papelão) auxilia na diversificação do espaço, oferecendo não só um local para o animal se esconder, mas também um local para brincar e descansar (O’FARRELL; NEVILLE, 1994).
Muitas vezes, objetivando a facilidade na limpeza, o ambiente destinado ao gato acaba sendo mal concebido em termos de bem-estar animal e/ou negligenciado com relação a oportunidades de enriquecimento (ELLIS, 2009). As caixas de transporte e os gatis, normalmente, são feitos de materiais como concreto, metal e plástico, porém alguns estudos mostram que os gatos possuem preferência por materiais que mantêm sua tempetura constante, como palha, papéis e tecidos de algodão. Dessa forma, recomenda-se disponibilizar substratos de diferentes materiais, em diversos locais do ambiente, a fim de aumentar suas opções (FUKUSHIMA; MALM, 2012).
Na natureza, os gatos possuem áreas distintas para dormir, descansar, defecar e se alimentar. Em um ambiente fechado, o espaço pode ser limitado a ponto de gerar problemas comportamentais, como, por exemplo, o ato de urinar fora da liteira (GEBRAEL, 2000). Comportamentos inapropriados de eliminação podem ocorrer por uma opção inapropriada do tipo da liteira e de seu manejo. Nos felinos, o comportamento de eliminação apresenta três erapas básicas: a escavação, a eliminação e a cobertura; portanto, caixas plásticas abertas e largar proporcionam um bom local de eliminação (HERRON; BUFFINGTON, 2010).
As liteiras devem permanecer em locais calmos, longes das areas de alimentação e descanso. Seu número deve ser igual ao número de gatos existentes no ambiente, sendo recomendada a adição de mais uma fora do local comum. A limpeza deve ser realizada, no mínimo, uma vez ao dia e o substrato, trocado de acordo com o material utilizado, ocorrendo, de forma geral, a cada semana (OVERALL, 2005).
A adição de outros objetos, como postes para arranhar, pode incrementar o bem-estar do animal e aumentar as oportunidades de utilização do ambiente. Os arranhadores, em especial, possibilitam que o animal mantenha as unhas paradas e marque território, comportamentos observados na natureza, evitando que os móveis da casa sejam utilizados para esse fim (ELLIS, 2009).
A marcação do território, por meio de arranhamento, trata-se também de um comportamento para evitar encontros indesejáveis e promover a reprodução, uma vez que fornece informações como identidade sexual e individual dos animais presentes no ambiente (GEBRAEL, 2000).
ESTRATÉGIAS OCUPACIONAIS
Atualmente, existe uma variedade de brinquedos disponível para gatos, porém, segundo Ellis (2009), existem poucos estudos da sua influência no comportamento e bem-estar dos gatos domésticos. Ainda assim, a atividade por meio de brincadeiras permite que o animal se exercite, auxiliando na manutenção do peso, no desenvolvimento mental e na diminuição do estresse.
Aparentemente, os tipos de brinquedo que mais interessam os gatos são aqueles que se movem, provavelmente por expressarem a parte final da sequência de caça, perseguição e ataque (CASE, 2003). No entanto, esses brinquedos não permitem consumar de fato caça e o impacto que isso gera no bem-estar dos gatos requer maiores estudos.
Objetos que possuem texturas complexas e se movem despertam algum grau de interesse nos gatos, porém objetos mais simples, como bolinhas de papel, muitas vezes são os que causam o maior interesse.
O caráter de novidade é sempre importante para os gatos, sendo que os brinquedos, quando deixados parados ao alcance do animal, logo se tornam previsíveis e entediantes, devendo-se sempre guardá-los após o uso, para manter o interesse em longo prazo (FUKUSHIMA; MALM, 2012).
ESTRATÉGIAS SENSORIAIS
O EA também pode ser realizado por meio de estímulos visuais e olfatórios.
Permitir o acesso a janelas com vista para áreas de atividades humanas e animais ou, ainda, a aparelhos de televisão com imagens de presas ou outros gatos apresentando comportamentos amistosos possibilita aos felinos domésticos observar outros indivíduos e se distrair por um período de tempo (ELLIS, 2009).
Muitos autores destacam a importância desse tipo de enriquecimento, apoiando-se na observação de gatos domésticos em estudos comportamentais. A grande questão é se esse tipo de estímulo não teria um impacto negativo no bem-estar desses animais, considerando que eles não conseguem alcançar e/ou interagir com o indivíduo em questão, estando sujeitos à frustação e alterações em seu comportamento. Mais estudos são necessários em longo prazo, combinados com outros parâmetros relacionados ao bem-estar (por exemplo, parâmetros fisiológicos), para avaliar esse tipo de intervenção (ELLIS, 2009).
A elevada capacidade olfatória dos felinos domésticos permite a aquisição de informações e a identificação e reconhecimento de indivíduos. Todos esses fatores aumentam a relevância dos estudos relacionados a esse tipo de enriquecimento. A utilização da Catnip ou erva-dos-gatos (Nepeta sp.), planta da família das hortelãs capaz de produzir um estado de euforia temporária em dois terços dos gatos que a usam, é bastante difundida (FUKUSHIMA; MALM, 2012).
Os estudos relacionados ao enriquecimento auditivo para gatos domésticos trazem resultados contraditórios, sendo, atualmente, desconhecido o potencial desse estímulo.
ESTRATÉGIAS ALIMENTARES
Atualmente, o manejo alimentar e o tipo de alimento (rações oferecidas em tigelas em porções ou à vontade) oferecido aos gastos domésticos não favorecem seu comportamento alimentar natural, o qual compreende localizar, capturar, matar e processar o alimento. Esse regime alimentar artificial empobrecido diminui a qualidade do tempo gasto em confinamento; portanto, algumas estratégias alimentares podem ser utilizadas na tentativa de promover a oportunidade de esses gatos expressarem seus comportamentos naturais, ou pelo menos parte deles, e tornar mais interessante o ato de se alimentar, além de auxiliar no controle da obesidade (VOGT et al., 2010).
Os gatos de vida livre obtêm o alimento em pequenas quantidades ao longo do dia. Dessa forma, é interessante espalhar potes de comida com pequenas quantidades de ração em locais baixos e altos costumeiramente frequentados pelo animal (FUKUSHIMA; MALM, 2012). Na natureza, os gatos caçam e buscam água em momentos diferentes; portanto, a presença de água perto dos recepientes de comida pode fazer com que ingiram menores quantidades. Para evitar essa situação, é recomendado disponilizar fontes de água em diversos locais da casa e alternar com frequência essa disposição para manter a sensação de impresivibilidade, muito apreciada por essa espécie. Para gatos que apresentam comportamentos agressivos ou de ansiedade, é possível disponibilizar a água e o alimento em locais calmos, sem presença de outros animais (VOGT et al., 2010).
Alguns gatos preferem água corrente, o que pode ser oferecido mediante fontes de água comerciais. O número de bebedouros e comedouros adequado em um ambiente é igual ao número de gatos mais um. Uma fonte vegetal deve ser oferecida ao gato para sua ingestão, funcionando como emético natural, de forma a auxiliar na eliminação de bolas de pelo.
AVALIAÇÃO DO SUCESSO DO EA
É preciso ter cuidado para não interpretar qualquer mudança comportamental do animal como indicador automático de enriquecimento. Embora s novidade tenha algum valor em termos de EA, é desconhecido em qual grau isso ocorre, podendo diferir entre indivíduos e estratégias. É importante também saber enriquecer o ambiente de acordo com o estágio de vida do animal, readequado os recursos quando for necessário (VOGT et al., 2010).
Devem ser consideradas iniciativas para o desenvolvimento de um corpo e mente saudável, como permitir que o animal manifeste comportamentos como os da vida selvagem.
As expressões faciais, postura, comportamento e vocalização podem informar sobre o estado emocional, que em geral, pode ser demonstrado de forma ativa ou passiva, sendo muito importante reconhecer ambos os tipos de comportamento apresentados pelos gatos.
Os felinos que demonstram comportamento ativo costumam se beneficiar de formas estimulativas de enriquecimento que redirecionam seus comportamentos a objetos apropriados como nas oportunidades de brincar sozinhos com objetos ou em casos de enriquecimento alimentar. Já os de comportamento passivo irão preferir algum tipo de enriquecimento que aumente sua segurança, como aqueles voltados para a parte física.
Para o enriquecimento ambiental, é preciso:
• Conhecer o comportamento
• Entender a persistência de características selvagens
Enriquecer o ambiente de felinos:
• Não é necessariamente dispendioso
• Exige dedicação
• Exige mudança constante no ambiente
• Requer promover desafios com os quais os animais consigam lidar e ser bem-sucedidos
O enriquecimento resulta em:
• Redução de estresse
• Melhora do estado físico
• Interação com as pessoas
• Melhora do bem-estar
REFERÊNCIAS
BEAVER, B. Veterinary aspect of feline behavior. St. Louis: C. V. Mosby, 1980. 217p.
CASE, L.P. The cat: its behavior, nutrition and health: Iowa State Press. 2ed., 2003.
FUKUSHIMA F.B.; MALM C. Bem estar e enriquecimento ambiental para gatos domésticos. Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia – Bem Estar Animal, Minas Gerais, n.67, p.92-101, 2012.
ELLIS, S.L.H. Environmental Enrichment: Practical Strategies for Improving Feline Welfare. Journal of Feline Medicine and Surgery, v.11, n.11, p.901-912, 2009.
GENARO, G. Gato doméstico- comportamentos & clínica veterinária. MEDVEP – Rev Cientif Med Vet Pequenos Anim Estim, v.3, n.9, p.16-22, 2005.
HERRON, E.H.; BUFFINGTON, C.A.T. Environmental enrichment for indoor cats. Disponível em:
O’FARRELL, V.; NEVILLE, P. Manual of feline behaviour. Cheltenham: BSAVA, 1994. 84p.
OLIVEIRA, A. S. Uso do espaço por gatos confinados: o papel modulatório do enriquecimento ambiental. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Riberão Preto, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. 80p.
OLSSON, I.A.S. et al. Understanding behaviour: the relevance of etholigical approaches in laboratory animal science. Animal behavior science, v.81, n.3, p.245-264, 2003.
OVERALL K.L. et al. Feline behavior guidelines from the American Association of Feline Practitioners. Am. Vet. Med. Assoc., v.227, n.1, p.70-84, 2005.
ROCHLITZ, I. Recommendations for the housing and care of domestic cats in laboratories. Lab Anim., v.34, n.1 p.1-9, 2000.
WPA – World Animal Protection. Our beliefs. Disponível em:
VOGT, A. H. et al. Feline life stage guidelines. Journal of Feline Medicine and Surgery, v.12, n.1, p.43-54, 2010.
FONTE: Revista CFMV